Dias de Notícias

Notícias escritas e assinadas por mim, Marcelo Dias, a partir de 1998.

domingo, setembro 27, 1998

As marquises como exílio

Na Fundação Leão XIII há estrangeiros que trocaram seus países pelas ruas do Rio

RIO (Extra) - Nascido em uma família de camponeses, o polonês Waldemar Zalewski, de 64 anos, deixou sua terra natal fugindo da perseguição nazista na Segunda Guerra Mundial. Do vilarejo de Zveres, ele e sua família se mudaram para o interior de São Paulo, onde trabalharam na lavoura. Mais tarde, Waldemar tentou a sorte em Rondonópolis (MT) e no Rio.

Já o português Carlos Alberto Peixoto Alves, de 46, não guarda lembranças de Braga, cidade onde nasceu. Vivendo no Brasil desde criança, ele cresceu em Quintino, subúrbio do Rio. Quando garoto, costumava jogar bola com o franzino Artur, que mais tarde se tornaria o maior ídolo da história do Flamengo. Dos campos de pelada de Quintino, Carlos Alberto seguiu, aos 19 anos, para o campo de batalha da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro.

Waldemar e Carlos Alberto têm histórias diferentes e destinos iguais. Ambos desembarcaram com suas famílias no Brasil, na esperança de melhorar de vida. Os dois viraram mendigos e estão internados na Fundação Leão XIII. Atualmente, há cinco estrangeiros entre as 1.500 pessoas assistidas pela instituição. Pelo último levantamento do órgão, há outros 2.094 mendigos vagando pela cidade.

Assim como 80% dos 800 internos do Centro de Recuperação Social de Campo Grande, Carlos Alberto e Waldemar romperam laços familiares e não têm endereço fixo. O polonês diz que ouve vozes e que brigou com os irmãos há 30 anos. O ex-operador do pregão conta que abandonou a mulher e as duas filhas por causa da bebida. Segundo o presidente da Fundação Leão XIII, Jaime Melo, a maior parte das pessoas que chega à entidade sofre de algum tipo de dependência química ou de problemas psiquiátricos.

- O comprometimento mental e químico levam eles a não fornecer referências. Trata-se de um povo com seqüelas psicológicas e desvios de conduta.

Eu já cheguei a jogar bola com o Zico

Carlos Alberto Peixoto Alves tem 56 anos e foi operador da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro

Estudei até o 2 Grau e joguei bola com o Zico. Lembro que a dona Matilde, mãe dele, o levava pela mão. Comecei a trabalhar como operador do pregão, em 1971. Em 76, fui gerente de loja no Aeroporto Internacional. Em 82, voltei a ser corretor. Mais tarde, tive problemas de estômago porque bebia e tive úlcera. Pedi demissão e entrei em processo de separação.

O casamento durou 18 anos e tive duas filhas. Morávamos numa casa própria, de dois andares, em Quintino. Saí de lá e fui para a rua. Antes, já tinha passado por instituições psiquiátricas. A bebida foi a razão de tudo. Desde então, não vejo minhas filhas. Domingo passado, fui na casa do meu pai. Não quero que minhas filhas venham me visitar. Mas gostaria de revê-las um dia. Tenho saudade delas. A Fernanda tem 21 anos e a Roberta, 17.

Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. Há quatro meses, dois rapazes me encontraram ferido na rua e me levaram para o Hospital Salgado Filho. De lá, fui para a triagem da Fundação Leão XIII. Agora, estou tentando voltar ao mercado, mas preciso ser treinado novamente. Consegui um emprego de vendedor na Brahma há três anos, mas não me adaptei.


A vida roubada pelo álcool

O português Alfredo Alexandre Fernandes, de 56 anos, nasceu em Braga e veio para o Brasil em 1957. Motorista, ele perdeu a família para o alcoolismo, se desinteressou pela vida e virou mendigo.

- Daqui só saio para Santa Cruz - diz, referindo-se ao cemitério daquele bairro.

A vida dele começou a desmoronar há 20 anos, quando o álcool lhe roubou não só a família, mas também a capacidade de pensar. Descontrolado, largou tudo e foi para as ruas do Riachuelo, onde morava com a mulher e os dois filhos:

- Foi tudo provocado pela bebida. Me separei em 1978. Um mês depois do divórcio, fui para a rua porque não quis pagar o aluguel. A bebida faz com que você não raciocine. Quando acorda, já é tarde.

Sem mais nada, Alfredo sobreviveu recolhendo papelão e pedindo esmolas na rua. Há cerca de dez anos, foi encontrado em Ramos e levado para o centro de triagem da Fundação Leão XIII, em Bonsucesso. Lá, conseguiu dar uma guinada, mas logo o destino o derrubou novamente:

- Trabalhei como carpinteiro e juntei dinheiro para dar entrada numa Kombi e fazer fretes. Mas ela pegou fogo em 1992.

De volta às ruas, Alfredo gastou o dinheiro em pinga. Há quatro anos, voltou para a Fundação Leão XIII.

- Não vejo minha família há 20 anos. Nunca me procurou. Meu filho mais velho se casou e preferiu deixar o convite com um colega meu. Sinal que de não queria me ver.

'À noite, eu queria chorar'

Por motivos diferentes, Carlos Alberto Peixoto Alves e Waldemar Zalewski foram parar nas ruas. O primeiro era alcoólatra e acabou perdendo o emprego e a família. O segundo nunca chegou a ter um lar desde que desembarcou no país vindo da Polônia com a família, há 62 anos. Ex-operador da Bolsa de Valores do Rio, Carlos Alberto virou mendigo depois de deixar, há sete anos, a casa de dois andares onde morava com a mulher e as filhas, em Quintino. A decisão foi repentina e não houve tempo nem para o divórcio.

Os primeiros sinais do problema surgiram antes, nos tratamentos psiquiátricos a que Carlos Alberto se submeteu. Segundo ele, a pior coisa ao se morar entre calçadas, marquises e viadutos não é a fome ou a falta de um teto para se proteger, mas sim a ausência total de perspectiva para o dia seguinte.

- É triste. Dá para agüentar durante o dia, mas à noite sentia vontade de chorar. Você pensa sobre o que fazer no dia seguinte e não vê perspectiva.

Em 1976, Carlos Alberto tentou ser gerente de loja no Aeroporto Internacional. Fora essa experiência, nunca soube fazer algo diferente do que operar na Bolsa de Valores, para onde voltou seis anos depois. Seu melhor emprego foi em 1986 no BCN, onde ganhava dez salários-mínimos.

A partir daí, a bebida jogou a vida de Carlos Alberto penhasco abaixo. Sofrendo de úlcera, pediu demissão. Em casa, as brigas aumentaram e o casamento de 18 anos acabou. Há quatro meses, foi para a Fundação Leão XIII. Agora, com o currículo debaixo do braço, Carlos Alberto tenta retomar sua vida do ponto em que parou.

- Estou tentando voltar ao mercado, mas está difícil.

No caso de Waldemar Zalewski, adivinhar o que se passa por trás de seus olhos azuis é tarefa quase impossível. Perseguido pelas tropas de Adolf Hitler, deixou a Polônia há 62 anos com os pais e os irmãos e veio para o Brasil. Desde os 35 anos, não fala mais com eles por causa de uma briga.

- Não tenho interesse em saber deles. Faz tanto tempo.

Waldemar passa os dias ouvindo estranhas vozes que não sabe de onde vêm.

- Vim para cá porque escuto vozes - conta o polonês, que gastou seu último tostão com uma passagem de ônibus de Rondonópolis para o Rio.

Fundação em busca de parceria

O número de mendigos estrangeiros poderia ser maior se um angolano que não se identificou e um tradutor argelino não tivessem abandonado a Fundação Leão XIII. Tonati Mohamed, de 42 anos, chegou ao Rio como refugiado após fugir da Argélia - país arrasado por uma guerra religiosa entre cristãos e muçulmanos.

Mohamed, segundo o prontuário do dia 27 de abril, declarou que tinha formação superior e parentes em Paris. No dia seguinte, saiu do albergue de Itaipu, em Niterói, dizendo que iria buscar seus pertences no Rio. Não voltou.

- Ele veio como refugiado. Estamos fazendo um convênio com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados para identificar pessoas como ele. Pedimos ajuda aos consulados, mas não tivemos resposta - diz o presidente da fundação, Jaime Melo.

Os estrangeiros que permanecem na instituição passam por um trabalho de ressocialização, com trabalhos de marcenaria, criação de porcos, cabeleireiro e aulas do Telecurso 2000, este em parceria com a Fundação Roberto Marinho.

Os outros estrangeiros internados no albergue de Campo Grande são os portugueses Antônio Moreira de Souza, de 64 anos, e João Faria de Carvalho, de 63.