Dias de Notícias

Notícias escritas e assinadas por mim, Marcelo Dias, a partir de 1998.

domingo, maio 24, 1998

Muitos degraus no meio do caminho

Escadarias e ladeiras em morros e favelas do Rio condenam idosos a ficar presos em suas próprias casas e cada vez mais longe do asfalto

RIO (Extra) - Surdo e sem poder andar, Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça, de 95 anos, vive separado do mundo pelas paredes de sua casa no Morro da Mangueira, há três anos. Cachaça é o último remanescente do grupo que fundou a Estação Primeira de Mangueira.

Preso a uma cama, o ex-mecânico José Félix Soares, de 64 anos, teve a coordenação motora comprometida por uma trombose. Se subir as escadarias do Pavão-Pavãozinho (Copacabana) já é um exercício pesado até para os mais jovens, para José Félix ficou ainda mais difícil no ano passado, quando o elevador que leva os moradores até a metade do morro enguiçou.

Derrotados pela idade, Carlos Cachaça e José Félix enfrentam o mesmo drama: osdois ficam confinados em suascasas e são impedidos de sair pela fragilidade do corpo.

Segundo o último censo do IBGE, de 1996, entre os 13.406.379 habitantes do estado havia 1.331.625 idosos (9,93%). Hoje, a população na faixa da terceira idade representa quase 11% dos fluminenses.

Adélia Carolina da Silva, de 73 anos - que vive no Morro do Vidigal há três décadas - é uma das que estão na estatística. Em abril, o barraco onde morava desabou. Desde então ela dorme no chão da casa de um vizinho. Com problemas de coluna, Adélia não tem forças para enfrentar as ladeiras da favela.

Em Vicente de Carvalho, Onira Marcos Gonçalves, de 72, só se arrisca a encarar a escorregadia inclinação do Morro do Juramento para sacar o dinheiro da aposentadoria. Dia desses, ela teve que ser carregada pois não resistiu ao esforço de subir o morro.

Nem mesmo o projeto Favela-Bairro foi capaz de amenizar o sofrimento dos velhinhos. As ladeiras e escadarias permanecem íngremes, tornando-se um obstáculo para o convívio social e isolando ainda mais os idosos. Para eles, percorrer 50 metros até a casa de um vizinho é uma prova de resistência. Alcançar o asfalto é uma maratona ainda mais difícil de ser enfrentada.

De casa só para a Sapucaí

Fundador e um dos maiores compositores da Mangueira, Carlos Cachaça vive preso a uma cama. Isolado, nem pôde participar da foto com a Velha Guarda, que está pendurada no mezanino da quadra da verde e rosa, ao lado da do presidente dos EUA, Bill Clinton. Para que não ficasse de fora, uma foto de Cachaça foi tirada em casa e anexada ao quadro.

- Não posso mais sair para nada há três anos. Nem aos shows na quadra da escola vou mais. Sinto falta disso tudo. À tarde, o pessoal costuma vir aqui e conversamos sobre os problemas da Mangueira - conta o sambista.

A única vista que lhe restou do mundo foi a do portão verde de ferro, que dá para um estreito corredor fechado. Ali Cachaça costuma ver crianças brincando e jovens fumando maconha.

Além do joanete que o mantém imobilizado e da surdez, Carlos Cachaça já não sente mais prazer em compor.

- Cansei de escrever. Perdi o pique. De vez em quando, o pessoal vem aqui em casa fazer uma batucada - conta, ao lado do neto Jorge Antônio de Castro Ferreira, que se reveza com a mãe, Inês, na tarefa de cuidar do avô.

Cachaça pode ter perdido o pique para escrever, mas na hora do carnaval não há barreira que o mantenha afastado da Marquês de Sapucaí.

Pão e arte a serviço do idoso

Criado em 1994 pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, o programa Rio-Experiente atende a aproximadamente 2.700 idosos por ano. Ao todo, ele congrega três projetos voltados para atividades culturais, fornecimento de bolsas de alimentação, atendimento médico e concessão de auxílio financeiro. Para isso, os interessados devem telefonar para a coordenadoria do programa (503-2382/2402) ou procurar um dos 30 Centros Municipais de Atendimento Social Integrado (Cemasi).

- O Cemasi também atende a idosos abandonados em casa e asilos. Mas é preciso que haja denúncia. Muitas dessas pessoas só querem conversar com alguém - explica Terezinha Romaneli, coordenadora do Rio-Experiente.

Sem contar com verbas públicas, o Projeto de Saúde do Programa Social da Mangueira (501-3244) funciona há nove anos na Vila Olímpica. No início, ele tinha como objetivo atender aos hipertensos.

- Fazemos consultas, fornecemos remédios e acompanhamento médico e psicológico. Também fazemos passeios ao Cristo e gincanas. Na verdade, queremos mostrar a essa gente que é possível fazer mais do que ficar em casa cuidando dos netos - diz a diretora Rosa Pieprzownik.

Desanimo só de pensar em descer essa ladeira enorme

Onira Gonçalves, de 72 anos, é moradora do Morro do Juramento

Vim de Recreio (MG) para morar em Barros Filho. Quando cheguei no Juramento há 38 anos, só havia mato. De dois anos para cá, só saio para sacar o dinheiro da aposentadoria e ir ao médico, no PAM de Irajá. Antes era pior porque morávamos bem no alto do morro, perto da caixa d'água. Por isso, nos mudamos mais para baixo. Outro dia, tive que ser carregada no colo por um dos meus netos porque me cansei durante a subida. Antigamente, ia à igreja todo dia. Agora nem vou mais porque posso levar um escorregão.

Às vezes, o pessoal me chama para conversar um pouquinho lá fora, mas não dá. Só saio para falar com a minha filha, que mora no andar debaixo da casa. Nem adianta me chamar para sair porque desanimo só de pensar nessa ladeira enorme. Se morássemos lá embaixo, no asfalto, até que poderia dar uma andadinha ou até mesmo passear.


As obras do Favela-Bairro não acabaram com as ladeiras

Adélia Carolina da Silva, de 73 anos, moradora do Morro do Vidigal

Estou desabrigada desde abril e, agora, durmo no chão da casa de um vizinho.Tenho dores nas costas e não posso com aquela ladeira. Às vezes, as amigas me chamam para sair e conversar, mas não dá.

Minhas compras são feitas por uma amiga. Tenho um filho que mora em Petrópolis e sempre me traz dinheiro, mas ele não aparece há dois meses. Uma filha nem quer me ver e a outra é doente. Toda quarta-feira recebo R$ 10 da Igreja Batista.

Só vou até a associação porque é perto. Lá, vejo um pouco da movimentação nas ruas. Essas obras que fizeram aqui do Favela-Bairro não fizeram diferença porque as ladeiras continuaram. Mas não me sinto sozinha porque tenho a companhia dos meus "filhos", esses nove gatos e dois marrecos. Quero apenas quatro cômodos para a gente.