Dias de Notícias

Notícias escritas e assinadas por mim, Marcelo Dias, a partir de 1998.

sexta-feira, abril 09, 1999

O tribunal da Providência

Três jovens levam tiros nas mãos como punição por venderem drogas mais caro

RIO (Extra) - Espancamento e perfurações a bala nas mãos. Esta foi a "sentença" decretada por traficantes do Morro da Providência a Luiz Eduardo Faustino Nunes, de 24 anos, e aos menores M., de 14, e E., de 16. Os três foram punidos ontem de madrugada por comprar sacolés de cocaína no morro, a R$ 10, para revendê-los na Central do Brasil, por R$ 15.

Irritados, os traficantes já sabiam disso e haviam formulado o "veredicto" com antecedência, colocando-o em prática imediatamente. O trio foi cercado na subida do morro e espancado por 15 homens armados com pistolas, metralhadoras e fuzis. Depois de levar coronhadas, eles foram baleados nas mãos. A tortura durou mais de uma hora.

Em seguida, receberam ordens de descer o morro correndo e, se fossem pegos pela polícia, deveriam dizer que foram atingidos durante um assalto, sob pena de serem mortos. Casos assim, no entanto, já são antigos e freqüentes nas grandes favelas do Rio de Janeiro, segundo o chefe de operações da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), Carlos Torres.

De acordo com o policial, todas as quadrilhas de tráfico de drogas bem organizadas possuem uma estrutura judicial, cujo "tribunal" é constituído pelo chefe do bando e seus gerentes de boca-de-fumo. Há ainda um carrasco, responsável pelas execuções, e um coveiro, encarregado de enterrar e desovar os corpos.

Luiz Eduardo e E. sofreram fraturas expostas na mão esquerda e tiveram escoriações na cabeça provocada por coronhadas. E. teve a mesma punição, sendo baleada na mão direita. A arma utilizada durante a "sentença" foi uma pistola calibre 45.

Os três foram encontrados por uma patrulha do 4 BPM (São Cristóvão) na calçada do Depósito de Material Bélico do Exército, na Praça do Santo Cristo, de onde foram levados pelos Bombeiros para o Hospital Souza Aguiar. De lá, foram transferidos para o Hospital Miguel Couto, no Leblon, onde Luiz Eduardo foi operado.

Caçada aos justiceiros acabou frustrada

Apavorados com o que aconteceu, Luiz Eduardo e E. afirmaram ao delegado Arlindo Braga Filho, da 4 DP (Central do Brasil), que eram viciados e foram ao morro para comprar drogas para uso próprio. A versão não convenceu o delegado, que extraiu a verdade de M.

O menor confessou que comprava sacolés de cocaína para revender na Central. Entretanto, a droga que três foram ontem era para o próprio consumo. Os depoimentos foram colhidos no Hospital Miguel Couto, onde os três permanecem internados.

- Eles foram ao morro só para cheirar. Os traficantes já sabiam que o garoto e o rapaz revendiam a droga mais caro e resolveram se vingar - explicou o policial.

À tarde, depois de deixar o hospital, o delegado organizou, junto com o diretor da Metropol I (Praça Mauá), Carlos Alberto Nunes Pinto, uma operação para procurar os traficantes responsáveis pelo crime. Ao todo, foram 18 policiais da Metropol I, da 4 DP e da 1 DP (Praça Mauá). A missão se concentrou na localidade da Pedra Lisa, onde teria acontecido a punição.

Ao final da operação, foi detido apenas um homem: Wagner Soares de Souza Chagas, o Bugi, de 22 anos, apontado por Arlindo Braga Filho como o responsável pela segurança do paiol de armas dos traficantes. Além disso, foram apreendidos 99 projéteis de fuzil.

Para tentar identificar toda a quadrilha, os policiais fotografaram o lugar e quem passava por ali. As fotos serão levadas para que Luiz Eduardo, M. e E. identifiquem os traficantes que os balearam. O delegado contou que há duas semanas um policial foi cercado e espancado por marginais do local:

- Agora, estamos levantando os pontos e investigando.

No Borel, em 92, 18 pessoas foram punidas por traficantes

A polícia não sabe ao certo quando os traficantes passaram a formar os seus tribunais paralelos. A primeira notícia que se tem desse tipo de execução data de 27 de novembro de 1992, quando 18 pessoas, incluindo menores, foram espancados e baleados nas mãos a mando de Nelson da Silva, o Bill, então chefe do tráfico de drogas no Morro do Borel, na Tijuca.

A "sentença" foi uma retaliação a um assalto a ônibus na Praça Saens Peña, no mesmo bairro, onde viajava uma de suas mulheres, que delatou a gangue. A execuçã, ao contrário do que acontece hoje, foi feita pelo próprio Bill.

Depois desse caso, foi a vez de a quadrilha do Morro Dona Marta, em Botafogo, inaugurar o seu tribunal. Em março de 1994, três assaltantes foram castigado com tiros nas mãos. Motivo do crime: eles atacaram um ônibus perto do morro e foram punidos por fazer com que a Polícia Militar realizasse uma operação de busca ali. Além disso, havia uma moradora da comunidade a bordo, que os reconheceu em uma boca-de-fumo.

Ha dois anos, a polícia constatou que a Favela do Jacarezinho também possuia o seu próprio tribunal. Desta vez, o condenado foi o camelô José Pinout, de 39 anos. A razão pela qual foi punido foi uma nota de R$ 50 usada para pagar um lanche em um trailer.

O comerciante, então, procurou o líder do tráfico local, Marcos Vinícius da Silva, o Lambari, para resolver a questão, sem recorrer à ajuda dos PMs.

Segundo o chefe de operações da DRE, Carlos Torres, outras favelas mantinham seus tribunais, como a de Parada de Lucas e de Vigário Geral. Hoje, os julgamentos acontecem com maior freqüência nos morros da Providência, no Jacarezinho e na Rocinha.

Um altar para a vítima ouvir a sentença

Os braços dessa Justiça paralela organizada pelos traficantes alcançam todas as grandes e médias favelas do estado. Anteontem, policiais da 34 DP (Bangu) encontraram um cemitério clandestino na Favela da Coréia, localizada na localidade de Vila Aliança, onde também havia um barraco onde os condenados eram julgados e condenados.

As marcas das execuções estavam espalhadas por todo o barraco. Manchas de sangue e perfurações a bala mostravam que era ali onde os traficantes decidiam as "sentenças" de suas vítimas, que aguardavam numa espécie de altar erguido num barranco. Através de denúncias anônimas, o delegado Anestor Magalhães reuniu uma equipe e partiu para o local à tarde.

Localizado em um lugar cercado pelo mato alto, o cemitério ficava escondido de olhares estranhos. As informações davam conta de que haveria, pelo menos, três corpos enterrados ali. Até ontem à tarde, porém, foi encontrado apenas o corpo de um homem, cruelmente espancado.

Com o crânio arrebentado, os policiais acreditam que o homem foi assassinado um dia antes da chegada da polícia. Este crime, provavelmente, foi o que desencadeou as denúncias que o delegado recebeu.

As buscas por mais corpos não terminaram e devem prosseguir ao longo de todo o dia de hoje. Atualmente, o tráfico ali é controlado por Robinho Pinga, ligado ao Terceiro Comando.

Da solitária ao espancamento

Uma sociedade à parte, com o seu próprio sistema legislativo e judiciário. É assim que o chefe de operações da DRE, Carlos Torres, classifica as maiores quadrilhas de tráfico de drogas do estado. Segundo ele, cada tipo de crime cometido nessas favelas ou por integrantes dos bandos tem uma forma de punição.

A pena mais severa, de morte, é aplicada a estupradores, informantes da polícia e naqueles que tenham roubado parte do dinheiro das bocas-de-fumo. Quem perde armamento pesado também perde a vida. No caso das três vítimas de ontem, no Morro da Providência, o espancamento e os tiros nas mãos foram apenas uma advertência.

- Essas pessoas ficam vivas para servir como exemplo às demais. A execução tem como objetivo mostrar que alcagüetes são punidos com a morte. É uma forma também de silenciar suas famílias - explica Carlos Torres.

Segundo ele, para escapar do "julgamento" ou ter sua pena amenizada, o "acusado" deve ter alguma forma de afinidade com o líder do tráfico, que preside esse tribunal de justiça paralelo. Torres conta que as informações sobre os delitos são passadas, geralmente, pelos gerentes de bocas-de-fumo, que integram o "conselho judiciário" do narcotráfico:

- Um informante meu, em Acari, ficou três meses de castigo dentro de casa, sem poder sair, até que os traficantes decidissem o que fazer com ele.

O policial conta que os soldados que perdem seus fuzis, durante confrontos ou não, são punidos com a morte. Perder uma arma pesada só é admitido quando se morre em tiroteio ou se é preso.

- É a lei do cão - conclui o policial.

Eles têm uma necessidade deste tipo de afirmação

Talvane de Moraes

Trata-se de um grande contraponto o que assistimos hoje nas favelas. Isso acontece à medida em que o Estado está totalmente ausente como mediador de conflitos e como agente social, função essa preenchida pelos traficantes.

Eles têm essa necessidade de afirmação através da violência. Na mente deles, isso faz parte da manutenção do poder. Na cultura deformada desses criminosos, essa manutenção se faz pela violência permanente.

Entre eles, matam-se aqueles que estão em posições de menor escalão. Os chefes começam a se sentir ameaçados e temem a ascensão dos mais jovens, que fatalmente subirão de posto, passando de vapor para olheiro, soldado e daí por diante. E é natural que queiram ambicionar o poder. O chefe, então, simplesmente manda liqüidá-los.

É a barbárie total. Manter o poder pela força. Se o chefe desconfia que está sendo ameaçado ou que alguém está pisando na bola, ordena um julgamento sumário. Este julgamento exerce um duplo papel: o de suplementar o exercício do poder e o de ascender sobre os outros integrantes de seu grupo pela força. Como quem diz "Não façam nada comigo porque eu mato".

Na sociedade tradicional, sofremos as sanções previstas pelo Código Penal. Lá, o julgamento é sumário.


TALVANE DE MORAES é psiquiatra forense

Com Mario Teixeira